Por Mayra Castro
Foi com um enorme sorriso no rosto, além de grande carisma e simpatia, que Cecília apareceu na plataforma de videochamada, às 19 horas de uma segunda-feira de agosto. Com quase 20 mil seguidores no Instagram, a jornalista, criadora de conteúdo digital, modelo e apresentadora do programa ‘Sai do Eixo’, apesar de jovem, já carrega muita bagagem e história pra contar.
Sempre empolgada e gesticulando bastante, Cecília fala, ao longo da entrevista, sobre suas experiências na televisão e na produção de conteúdo, além de expor seus posicionamentos com relação ao fazer jornalístico e aos critérios de objetividade. Trazendo para seu trabalho temas que vão desde estilo de vida, passando por consumo consciente, bem-estar e sexualidade, até valorização de estéticas pretas, a jornalista explica como vem construindo seu lugar no mundo enquanto mulher preta e LGBT.
Quanto à escolha de seguir carreira no jornalismo, Cecília diz que não tem uma história romântica por trás disso e que, apesar de não ser algo que escolheu desde criança, se encontrou na comunicação social e hoje é apaixonada pelo que faz.
“Eu estava nessa tensão – de qualquer adolescente no terceiro ano – pra escolher algum curso da faculdade e eu gostava muito de quase todas as matérias na escola… não que eu fosse boa em todas, mas me interessava, e também gostava muito de escrever. E aí, em determinado momento, eu pensei ‘se eu fizer jornalismo eu posso estudar tudo, posso escrever sobre toda e qualquer coisa’. Felizmente, nesse golpe de sorte, acabei escolhendo o curso certo e sou apaixonada pela minha formação e pela carreira que escolhi”, conta a jornalista, que estudou Comunicação Social na UFF.
Ainda em seus anos de faculdade, a jornalista sempre foi encorajada por seus colegas a criar conteúdo na internet, mas se sentia insegura: “Algumas regras que eu via em todo lugar sobre esse tipo de trabalho me travavam. Por exemplo, ter que escolher um nicho”.
Assim, Cecília só começou a produzir conteúdo quando finalmente decidiu não se importar com o nicho ou com as supostas regras de como fazer sucesso. Ela acredita que o sucesso pode vir como consequência de um trabalho prazeroso e bem feito, que afete positivamente a vida das pessoas.
“Eu sempre senti que tinha muito o que falar e muito o que ouvir. Sempre gostei de fazer essa congregação de histórias e experiências das outras pessoas e minhas também. Isso acontecia muito naturalmente, tanto offline, como no Instagram, que é a rede que uso com mais frequência hoje em dia. E aí eu pensei ‘ok, isso aqui tá rolando, tá fluindo, mas se eu quiser trabalhar com isso, tenho que levar a sério’. E assim eu comecei a, de fato, me profissionalizar nesse ramo”, acrescenta sobre o início de sua trajetória.
Cecília conta que a escolha dos temas com os quais costuma trabalhar também aconteceu naturalmente. Ela lembra de uma entrevista de emprego que a fez perceber com que áreas não queria trabalhar e a direcionou para o caminho que segue hoje. “Era uma vaga muito metódica, mecânica, não tinha nada de relacionamento com o público, não era nada artística, era mais sobre lidar com dados. E aí eu fiz a entrevista inteira e no final me falaram ‘olha você foi ótima, não temos nenhum motivo para não te contratar, mas você se vê trabalhando aqui? Você acha que isso tem a ver com você?’ E foi aí que eu percebi que não”, relembra.
Logo em seguida, a jornalista se inscreveu para uma vaga no GNT, onde começou a produção de um dos seus projetos mais marcantes, o programa ‘Sai do Eixo’. A websérie de seis episódios tem o objetivo de apresentar opções de entretenimento alternativas ao circuito convencional do Rio de Janeiro, trazendo dicas de transporte, restaurantes, quanto gastar, dentre outras. Além disso, o ‘Sai do Eixo’ também busca dar destaque a agitadores culturais e empreendedores que fomentam arte e cultura em suas comunidades. Ela detalha:
“Eu percebi que existia essa falta de representatividade da maior parte do Rio de Janeiro. Quando a gente vê novelas, séries e minisséries na televisão, sempre vemos um Rio de Janeiro branco, principalmente da Zona Sul. Então, conforme fui vivendo essas experiências incríveis [em espaços culturais não convencionais do Rio de Janeiro], realidades que eu nunca tinha visto e percebido, descobri pessoas que de fato querem impactar a sua sociedade e suas comunidades. Veem isso como um propósito de vida e empreendem, fazendo projetos para trazer mais entretenimento e alegria, o que acaba gerando mais empregos. Mas eu não via isso sendo representado ou valorizado em lugar nenhum, nem essas pessoas se vendo representadas ou ocupando espaços na mídia. Então decidi que queria falar sobre isso, fazer uma série sobre isso”.
Ainda sobre o ‘Sai do Eixo’, o programa foi disponibilizado de forma gratuita a partir do Youtube. Ao ser perguntada sobre a imersão do jornalismo nesse tipo de plataforma digital, Cecília diz que é algo que contribui para a democratização do acesso a conteúdos que muitas vezes só poderiam ser consumidos em canais de TV fechada, inacessíveis para boa parte da população.
“Pensando nas pessoas que têm menos recursos financeiros, que não têm condições de pagar uma tevê a cabo, por exemplo, estar no YouTube é a principal maneira de conseguir assistir a esses conteúdos. Se programas como o ‘Sai do Eixo’ estivessem numa televisão paga, o impacto seria o oposto, não chegaria às pessoas de áreas mais periféricas e elas não se sentiriam representadas. Então, com certeza essas plataformas digitais gratuitas ou mais acessíveis fazem com que muitos conteúdos e muitos debates alcancem novas pessoas”, analisa.
Atualmente, Cecília trabalha como produtora de conteúdo, apresentadora, jornalista e modelo. Para conciliar todas essas atuações, ela decidiu se demitir do emprego em tempo integral e optar pelo empreendedorismo, atuando de maneira autônoma, a partir do jornalismo freelancer.
Ela diz que não se via mais satisfeita em atuar a maior parte do tempo em projetos que não lhe diziam respeito: “Sinto que tenho muito o que dizer e por isso optei por me organizar, planejar, tanto financeiramente quanto psicologicamente, para essa virada de chave. É um grande impacto, mas não me arrependo nem um pouco”.
Criada em uma família que experimentou uma ascensão socioeconômica, a jornalista conta que aprendeu a valorizar empregos fixos e estabilidade financeira, de forma que optar pelo empreendedorismo não foi uma decisão fácil. Por isso, ela destaca que nesses momentos o cuidado psicológico é de extrema importância, além de prezar pela organização e deixar a mente aberta a novas possibilidades.
“Meus pais vieram de uma realidade bem mais pobre, bem mais privada financeiramente, e foram ascendendo economicamente por conta da graduação. Então me ensinaram como prezar pela estabilidade, guardar dinheiro e não se arriscar muito. Só que o empreendedorismo é uma roleta russa, a gente não faz ideia do que vai acontecer: pode dar super certo, pode dar super errado ou pode dar muito errado e depois muito certo. É preciso ter um olhar perspicaz, se manter motivada e inspirada para criar coisas interessantes, que fazem bem pra você e que são de fato bons conteúdos, para, enfim, ter bons resultados”, detalha a jovem.
Enquanto trabalhava na Rede Globo, Cecília participou da fundação da ‘Junta Negra e Diversa’, uma iniciativa de funcionários que reflete a falta de representatividade e ocupação negra na televisão brasileira e que busca construir uma programação multiracial e pluricultural. Ela acredita que a presença de pessoas negras dentro de espaços de produção jornalística não é apenas justa, como também essencial, ainda mais considerando a proporção de pessoas pretas na população brasileira.
“Pensando num ponto de vista capitalista e econômico, pessoas pretas vão consumir mais conteúdos que dialogam com elas. Quando a gente se identifica com o conteúdo é muito mais provável que o consumamos. Então, é essencial a presença desses profissionais para fazer conteúdos que de fato reflitam a sociedade, tanto ao contar histórias de uma maneira mais adequada, quanto na escolha de pautas. Eu aprendi na universidade que não existe jornalismo sem opinião, escolher uma pauta já é um posicionamento. Então quem você vai entrevistar na hora de cobrir um escândalo político, por exemplo, já é um posicionamento”, reflete.
Ela acrescenta: “Por isso, é muito importante ter a diversidade representada nas pessoas que trabalham no jornalismo, para que suas perspectivas também sejam contempladas na hora da produção dos conteúdos. Fora a ocupação de cargos de poder, de liderança, de tomada de decisão, tudo isso que é essencial não só no jornalismo, mas em qualquer tipo de empresa”.
Ao ser perguntada sobre o ideal de objetividade no jornalismo, Cecília acredita que ele deve ser respeitado, porém de maneira não excludente, não racista, não feita pelas mesmas mãos há séculos. Para ela, “quando nós temos pessoas de diferentes realidades, etnias, idades, tipos de corpos, criando jornalismo, criando conteúdo, a diversidade na sociedade vai ser refletida. Não é necessariamente sobre abrir um espaço exclusivo para uma pessoa negra falar, mas é entender que dentro das pautas sociais existe a negritude”.
“A objetividade, frequentemente na história do jornalismo, reflete o que é tido como normal. Só que esse ‘normal’ depende de quem está falando, de quem está contando essas histórias, quem está nos meios de produção, quem é dono desses meios, quem são as pessoas que contam essas histórias”, analisa, expondo um posicionamento que a universidade ajudou a construir.
A produtora de conteúdo reflete sobre meios digitais e admite que os considera uma forma mais ampla de escolher suas próprias pautas e passá-las ao público do modo que acha mais interessante, sem ter que agradar a chefes ou empresários e acionistas de conglomerados jornalísticos:
“Eu decidi ser minha própria chefe para definir a minha linha editorial e escolher as minhas pautas. É claro que, pensando em uma criação de conteúdo com responsabilidade, eu não posso falar de qualquer coisa a qualquer momento sem pesquisar, sem me preocupar com como isso vai impactar meu público, se o que eu tô falando é verdade, tem embasamento. Mas as redes sociais representam um portal para comunicarmos aquilo que a gente quer. Eu falo sobre o que eu gostaria de ter ouvido. Falo sobre aquilo que não vejo outras pessoas falando, e que podem até comentar ou falar sobre o mesmo assunto, mas não o contemplam da maneira como eu gostaria, então eu mesma faço. E não vejo essa possibilidade em portais hegemônicos”.
Com relação a sofrer preconceito em ambientes de trabalho, Cecília afirma que se não acontecer algo de forma muito nítida, muitas vezes o profissional nunca vai saber se passou ou não por obstáculos por fazer parte de algum grupo minoritário.
“Eu nunca vou saber porque que não passei nas quinze primeiras entrevistas de emprego que fiz. Diretamente, de forma nítida, em ambiente de trabalho, eu nunca sofri LGBTfobia ou racismo, também por ter trabalhado principalmente em espaços mais inclusivos. Mas sempre fico com esse pé atrás, tentando entender se meu comentário não foi ouvido por eu ser mulher, ou preta, ou jovem, ou periférica… a gente nunca sabe muito bem. E tenho certeza de que a minha capacidade, o meu talento e o meu trabalho teriam sido mais valorizados se eu optasse por falar de outras pautas. Se quisesse falar sobre coisas muito mais vendáveis e muito mais próximas das pessoas que estão em cargos de tomada de decisão, talvez eu tivesse tido mais oportunidades diferentes. Mas não tem muito como saber”.
Por fim, surgiu a curiosidade sobre sua tão impactante frase que está estampada em seu perfil do Instagram, assim como no título dessa entrevista, e Cecília foi questionada sobre quais estratégias utiliza para construir seu lugar no jornalismo e no mundo.
“Primeiramente, sempre me lembrar dos meus propósitos, o que me faz acordar de manhã e tomar minhas escolhas. Além disso, ser honesta comigo mesma e com a minha verdade. Saber que a vida não é só cor de rosa, e que não fazemos todas as coisas que adoramos o dia inteiro”, diz.
“Ainda assim, preciso ser honesta com meus valores, entender até onde algo é flexível e até onde não é. E também me associar a pessoas que têm os mesmos interesses que eu, de transformação social, de ocupação e criação de novos espaços. Estar aberta a ouvir outras pessoas e ter esse olhar perspicaz, de entender como eu posso contribuir com uma causa ou como uma causa, um projeto, uma marca, podem contribuir comigo também. E me cuidar. Porque se a gente não estiver saudável nesses três níveis – corpo, mente e espírito – nada adianta, é tudo em vão”, sintetiza a jovem sonhadora.
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